quinta-feira, 14 de junho de 2007

Saiu na FOLHA: 14 de junho

NINA HORTA Itinerário gastronômico
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"É a história de um detetive que gosta de comer. Que só gosta de comer, para ser mais exato. Tudo o mais é indiferente"
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O LIVRO do Tiago Novaes, "Estado Vegetativo", da editora Callis, começa como um thriller, a história de um detetive gordo e comilão, mas incomoda desde o início. Por baixo daquilo, da ironia, dos labirintos intrincados, tudo faz lembrar alguma narrativa policial lida há muito tempo, desde os X9 de outrora, todos misturados num só, às vezes pela linguagem, às vezes pela situação, por uns cacoetes, pelos nomes dos personagens.Já no próprio detetive Guedes senti segurança, autenticidade, realidade, um detetive de verdade, carregando suas banhas com muita consciência de gordo. O Guedes é exatamente "comme il faut" neste tipo de história, vivendo suas angústias, desleixado, muito bem delineado de corpo e alma. Ora, querem saber, para mim, o único personagem do livro é o detetive Guedes. Quando já está fisgado pelos bons diálogos, pela prosa bem urdida, pelas palavras escolhidas a dedo, o livro vai se transformando em reflexão sobre a literatura. Quem escreve, porque escreve, para quem. E o que tem o "Estado Vegetativo" a ver com uma coluna de comida? A certa altura, o autor, pela boca do Guedes, pergunta sobre o belo estilo de um escritor, filho de carpinteiro e cozinheira: "Quem sabe não foram a disciplina do contato com a madeira e o sabor inédito resultante da combinação dos ingredientes com o fogo, os ensinamentos necessários a um futuro escritor, esculpindo o estilo, combinando os elementos do idioma, dosando com cuidado os seus temperos?" Melhor, então, pedir ao próprio Tiago Novaes que exponha as preferências alimentares do seu detetive por e-mail. "É a história de um detetive, Guedes, que gosta de comer. Que só gosta de comer, para ser mais exato. Tudo o mais é indiferente. O livro perfaz um itinerário gastronômico paulistano que me é muito caro, de bares e restaurantes que de fato existem, e outros que já nem tanto. Entre conjunturas e hipóteses, os garçons passam com os pratos. Em cena fundamental, um concurso de culinária tem desfecho terrível. Em miúdos, não há como o leitor não perceber que o ato de comer é um eixo que permeia as reflexões do livro e as mortes que se sucedem. (...) Retorna sempre aos mesmos estabelecimentos tradicionais. A comida que come, contudo, é substanciosa. Inspirado, meu detetive foi em outro catalão, que você deve conhecer. Pepe Carvalho, de Manuel Vasquez Montalban..." Então, vamos lá, gulosos e curiosos. O que come o Guedes e onde. O detetive gosta de quase tudo. "Churrasco grego, sanduíche de pernil, pastel de bacalhau, kafta de carneiro na bandeja, paçoca de carne-seca, quibe cru, costela desfiada, pernil no bafo, presunto serrano, sanduíche de chouriço, cupim encasquerado, espeto de coração de galinha com farofa, coxa de galinha com Catupiry, copa curada, gordura de picanha com sal grosso na brasa, pururuca, torresminho." E os lugares que freqüenta? Família Albanese -sardela, pão quentíssimo de provolone com azeitonas pretas, pastéis de Santa Clara e mortadela com grãos de pimenta. Restaurante Jabuti, no fim da Joaquim Távora. Sardinha à escabeche. Rancho Nordestino da rua Santo Antônio -a melhor paçoca de carne-de-sol da cidade. Mercearia São Pedro, no fim da Vila Madalena, ambiente e cerveja. Pandoro: batida de caju e vodca. Bar do Léo (localizado no coração da boca do lixo): o melhor chope e os melhores canapés da cidade, como o de carne moída crua molhada na mostarda sobre pão integral. Não é um romancezinho policial, literatura menor aos olhos de alguns. É um livro muito bem escrito. E pode ser que vire filme. E que ele, o detetive, desapareça sem deixar rastros, como um balão que esvazia. Vamos logo ao labirinto deste Minotauro paulistano.